Chegada dos europeus na América foi o primeiro 7 a 1 da história, diz autor
Uma história ainda incerta, mas que ganha cada vez mais detalhes. Esse é o resumo da conversa com o jornalista Reinaldo José Lopes, do Darwin e Deus, quinto convidado do Fale, blogueiro, programa de entrevistas com blogueiros da Folha no Instagram Stories.
Reinaldo lançou no ano passado o livro “1499: O Brasil Antes de Cabral”, que descreve o passo a passo da chegada do homem nas Américas e a evolução gradual que ocorreu por aqui.
“Dá sim para falar em civilizações”, diz.
É sobre isso e muito mais que o programa girou em torno. Assista à íntegra no vídeo abaixo ou leia os melhores trechos.
O que sabemos até agora sobre os Homo sapiens?
Somos todos africanos. De onde viemos na África não está muito claro, mas datas estão ficando mais dinâmicas. Falava-se em 200 mil anos, com um fóssil da Etiópia, e agora estão aparecendo fósseis de 300 mil anos no Marrocos. É um pouco complicado pois têm características de mosaicos que misturam traços modernos com arcaicos, mas parece que a data está voltando para trás uns 100 mil anos. E a expansão para fora da África está ficando bem mais antiga, conforme temos vistos nas últimas pesquisas. Um fóssil recente de 85 mil anos na Arábia Saudita, por exemplo, embaralha um pouco do que sabíamos, tanto na questão temporal como na geográfica. Isso mostra que talvez tenhamos tido várias ondas diferentes –o que talvez faça sentido se pensar que eram vários grupos de caçadores-coletores que iam atrás da caça e dos recursos pesqueiros. Pensar em uma única migração não faz sentido.
Havia intersecção entre os Homo sapiens e essas espécies?
Sim, a gente não sabe exatamente, mas certamente havia conflitos, competição por recursos, e às vezes podia ter aliança, contato pacífico. E a gente sabe com base no DNA de quem não é africano que tem uma porcentagem de 2% mais ou menos de neandertal, e na Ásia e Oceania tem DNA dos denisovanos. Então, rolou sexo, rolou muita transa.
Como o homem chegou à América?
A teoria do Estreito de Bering continua valendo, a questão é saber se um povo só passou (que seria o ancestral do indígena moderno) ou se dois povos vieram. As evidências do Brasil, em especial de Lagoa Santa (MG), mostram dezenas de crânios com a morfologia que lembra os africanos e os aborígenes australianos e melanésios, que é diferente do crânio dos indígenas atuais, de maneira geral. É o trabalho Walter Neves da USP, que é bem importante. É o povo da Luzia, a nossa mais antiga americana.
E Monte Verde, no Chile?
Monte Verde é o sítio arqueológico mais antigo da América, tem uns dois mil anos a mais do que Lagoa Santa. É difícil imaginar que tenha sido uma mega viagem através de canoa da Ásia até o Chile, esse pessoal deve ter chegado lá de cima. Engraçado ter esse sítio quase no extremo sul do continente e não no norte. Lá você não tem restos humanos, só artefatos, evidências de uso tanto de vegetais quanto de animais (eles caçavam mastodontes, parentes primitivos dos elefantes). É um dado que indica essa descida do norte pelo Pacífico, de barco, usando os recursos costeiros da costa do Pacífico.
Mas e os polinésios, que chegaram em lugares distantes de barco?
Eles são incríveis, mas tinham uma tecnologia bem mais avançada para alcançar grandes distâncias, que os povos mais antigos não tinham, só pequenas canoas.
O que são os sambaquis?
As pessoas achavam que era só um lixão, que os moradores eram caçadores-coletores, não plantavam ainda, habitando a costa brasileira na região Sudeste e Sul (RJ e SC), que o pessoal só comia mariscos e moluscos e jogavam os restos até formar um monte. Hoje as pesquisas estão mostrando que não, que esse acúmulo de restos de conchas eram construídos, projetados para formar túmulos de indivíduos de uma certa elite, com rituais que incluíam peças de arte, pinturas corporais, oferendas para os mortos, e ainda formavam referência territorial –tem sambaquis de 50 metros– para dizer “esse pedaço é meu, a gente manda nesse pedaço”. Tem uma certa lógica que lembra das pirâmides.
Qual a importância da terra preta na ocupação aqui do território brasileiro?
É um pouco misterioso, não sabemos com certeza como elas surgiram 100%. Como a Amazônia é muito grande, a área relativa em relação ao total é pouca, mas o território total é grande. É um tipo de solo (por ação humana, como queima controlada de restos animais e vegetais e até cocô humano) que vai ficando mais escuro e fértil com o passar dos anos. Então você tem a terra avermelhada da Amazônia que é infértil, mas a terra preta é muito mais fértil, com muito mais nutrientes. Uma ideia é que tenha sido criado intencionalmente, em parte por acaso, em parte intencionalmente, para ter uma agricultura mais elevada. De fato, os relatos coloniais de portugueses e espanhóis falam em uma Amazônia lotada de gente, com inúmeras cabanas. Uma ideia é que esse tipo de solo tenha conseguido sustentar esse povoamento e sociedades complexas com chefes poderosos, exércitos, criação de tartarugas em viveiros.
Como funciona o teste do carbono-14?
Ele continua atual, mas tem limites. A gente só consegue datar pelo carbono-14 matéria orgânica –ou seja, coisa que esteve viva algum dia, como madeira, osso, dente, pedaço de tecido, couro. Até 60 mil anos você consegue datar com alguma precisão, depois disso tem que pegar outros métodos, que também são úteis (dá para datar coisas da origem da Terra com bilhões de anos). O carbono-14 é criado a hora que bate uma radiação do espaço em um átomo de carbono e ele começa a perder devagarzinho partículas radioativas e por essa taxa você consegue estimar a idade. Isso varia com o tempo (depende das condições do solo e da galáxia) mas no geral a margem de erro é de 30, 40, 100 anos, o que não é muito nessa margem de 100 mil anos.
Como o fim da Era do Gelo impactou nossa ocupação?
A coisa mais importante é que todo interiorzão que tem cerrado e vegetação mais aberta estava lotada de animais que parecem os da África de hoje (cavalos selvagens, lhama selvagem brasileira, preguiças-gigantes do tamanho de um elefante, tinha urso no Brasil). A gente não sabe muito bem o que aconteceu, talvez tenha tido um papel do clima, talvez da ação humana, mas o fato é que uns 10 mil anos atrás esses bichos desaparecem todos. Os grandes mamíferos que nossos indígenas poderiam ter domesticado não foi possível porque eles não tinham mais matéria-prima para isso. Houve uma maior dificuldade para criar sociedades complexas aqui porque eles não tinham animais domésticos de grande porte, e se não tiver cavalo e boi pra puxar arado, pra comer, fica muito difícil desenvolver uma sociedade. Isso fez uma diferença brutal no avanço das sociedades aqui na América e na Europa e Ásia e na dominação dos europeus no século XVI.
Um seguidor pergunta por que se fala pouco de guerras tribais, antropofagia, doenças indígenas.
É preciso fazer uma ressalva. A única grande doença que se tem registro que os índios passaram foi a sífilis. Varíola, sarampo, gripe, tuberculose, todo o resto veio dos europeus. Então foi o 7 a 1 dos europeus em cima dos índios, essa transmissão de doenças foi o primeiro 7 a 1 da história, que dizimou os indígenas. Em relação a guerras, temos poucos dados. De fato, havia guerras, mas o principal objetivo dela não era território, era capturar o inimigo e comer ele. Agora, importante lembrar que os Tupi, um grupo muito aguerrido, guerreiro e antropófago, eram só um pedacinho muito pequeno do total de tribos que aqui viviam, que não realizavam essas mesmas práticas. Grupos como os aruak eram bem mais pacíficos, diplomáticos, faziam alianças de comércio.
É possível aumentar o interesse por áreas como arqueologia e antropologia?
O interesse existe, como na séria do History Channel, Guia Politicamente Incorreto, baseado nos livros do Leandro Narloch, (tenho minhas críticas, mas não vou detalhar), então interesse sobre o passado do Brasil tem muito. Para essas questões de ciência básica, para entender nosso passado, entender como o universo funciona, quem tem que bancar isso é o governo, não tem jeito. Tem que pressionar o governo para que dê valor ao conhecimento científico básico. Outra coisa importante, tem muitos legisladores lá no Congresso querendo diminuir as exigências de impacto ambiental para fazer grandes obras ambientais no Brasil. Tudo bem, a gente entende que a economia tem que andar, tem que ter empreendedorismo, mas se você joga isso a toque de caixa você detona o ambiente e o passado. Uma das exigências que se tem hoje é fazer o salvamento arqueológico antes de fazer a obra. E os congressistas estão loucos para aprovar o fim disso. Então, pressionem na hora da eleição para não virar putaria.
Na usina de Santo Antônio foi feito um mapeamento arqueológico às pressas, não?
Eu estive lá, inclusive veio o registro de terra preta mais antigo da Amazônia (8 mil anos). Se perdesse isso nunca íamos saber desse fato importante. A gente é muito bagunçado. A questão é usar com sabedoria.
E como incentivar pesquisadores de fora para vir ao Brasil?
Uma coisa é que muito burocrático para pesquisadores brasileiros fazerem parceria com o exterior. Dar amostras ou receber amostras às vezes ficam meses na vigilância sanitária. É importante criar mecanismos para desburocratizar a ciência brasileira de maneira geral. E ser um pouco menos paranoico. Claro que biopirataria é algo importante, mas seria melhor se soubéssemos explorar melhor nossa biodiversidade. A gente fica aí plantando soja e criando boi só, e tem um monte de coisa importante que poderíamos transformar em tecnologia e não conseguimos.
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Confira a segunda edição do Fale, blogueiro, com o jornalista Salvador Nogueira, do blog Mensageiro Sideral. Para ele, o Sirius é a exceção que dá certo na ciência brasileira.
Confira a terceira edição do Fale, blogueiro, com o jornalista Marcos Nogueira, do blog Cozinha Bruta. Para ele, a palavra gourmet deveria ser extinta da Terra.
Confira a quarta edição do Fale, blogueiro, com a jornalista Lívia Marra, do blog Bom pra Cachorro. Para ela, pet pode ser como um filho, mas deve-se evitar exageros.