Página altera letras de músicas que falam de mulheres e faz sucesso entre internautas
Um refrão parece tratar uma perseguição como algo corriqueiro. Outro, incentiva a violência, ainda que de forma velada. Também há aqueles que objetificam corpos, entres outras queixas que bradam, sobretudo, de cordas vocais femininas.
Se depender da advogada Camila Queiroz, 25, letras de músicas como essas, que podem soar como ofensivas para alguns ouvidos, merecem a chance de serem “arrumadas” a fim de agradar outras orelhas.
E é isso o que a jovem, natural de Capitão Leônidas Marques, no Paraná, mas que hoje mora na capital do Estado, propõe aos seguidores da recém-criada página na rede social Facebook “Arrumando Letras“. De ascensão meteórica, até a publicação deste texto, ela, que nasceu oficialmente na última sexta (24), tinha 186.343 curtidas –número que não para de despontar.
O objetivo da criatura, segundo a criadora, é estimular as pessoas a observarem as duas versões e, assim, fazer com que percebam o quanto a letra original pode ser desrespeitosa e intolerante –máxima que vale para qualquer música, de qualquer gênero, de qualquer época.
“Surgiu de uma discussão que sempre tenho com amigas: como o machismo está presente no nosso cotidiano e nem sempre percebemos isso”, diz a criadora à Folha. “Dei o exemplo de letras de músicas que a gente canta sem se dar conta do conteúdo embutido”.
TRAJETÓRIA DE SUCESSO
Depois da conversa com as amigas, Camila compartilhou, na sua página pessoal, duas letras “corrigidas”. “É muito interessante”, incentivaram seus primeiros leitores.
O passo seguinte foi divulgar uma das versões “arrumadas” em um grupo fechado de humor, também pertencente à rede de Mark Zuckerberg. O sucesso impulsionou a paranaense a ir adiante.
“Como no grupo tinha muita gente que eu não conhecia, fiz a página para que elas pudessem compartilhar. Quando bateu 300 likes, pensei ‘ok, isso é o máximo que vai ter mesmo, tá ótimo'”, conta. Ledo engano. “Estou meio em choque, mas feliz pelo alcance. Acho que é um tema importante e deve ser abordado, mas eu sou uma pecinha de algo muito maior”.
COINCIDÊNCIA
É segunda-feira (27) e o boom das redes sociais no momento gira em torno da crítica feita ao vivo, no dia anterior, pela apresentadora Titi Müller as composições do DJ israelense Borgore, prestes a se apresentar no festival Lollapalooza.
Durante a transmissão do evento pelo canal de televisão BIS, Titi disse que suas letras são “machistas, misóginas, babacas mesmo”, antes de citar a tradução do verso de uma delas: “‘Aja como uma vadia, mas antes lave a louça”.
À Folha, Titi disse que fez “sua obrigação” e que não compactua “com nenhum artista que subjugue as mulheres”.
Perguntada sobre o caso, Camila é categórica: “Ela [Titi] tem toda razão”.
Não demorou para que a música do DJ pipocasse “corrigida” na timeline da “Arrumando Letras”.
“Não deu pra salvar nada da letra e a tradução é tão nojenta que eu me recuso a postar na integra”, escreveu Camila em publicação compartilhada ainda na segunda.
NOVAS VERSÕES
Do ponto de vista de Camila, as letras costumam ganhar complementos ou terem trechos excluídos. Algumas, caso a do DJ Borgore, pelos seus critérios, simplesmente “não tem salvação”.
“Várias letras descrevem o homem como ‘livre’, ressaltando que ‘ninguém o prende’, mas quando falam da mulher, é sempre como se ela fosse uma sortuda por ter amor, por ser desejada”, diz.
DAQUI PRA FRENTE
Com o alcance da página subindo, cresce, também, o número de pitacos e pedidos. Tudo bem para a Camila, que diz estar gostando da experiência de troca com outros internautas.
“É esse contato e a ideia de que as pessoas estão prestando mais atenção no que falam e no que cantam que me motiva a continuar. Talvez isso cause também um certo desconforto em quem escreve as letras e a mulher passe a ser melhor retratada nas músicas, mas isso só o tempo dirá. Não é minha página que vai mudar todo o contexto em que vivemos, mas se ela tiver qualquer contribuição, por mais ínfima que seja, já valeu a pena”.
O PROBLEMA É A LETRA
Por ora, a administradora da “Arrumando Letras” diz que nenhum cantor a procurou, mas garante que, se aparecer, terá, sim, espaço na página.
“Eu não estou aqui para crucificar nenhum artista. Pode ser que ele tenha crescido em um ambiente machista ou que cante aquela letra porque é o que a gravadora mandou ou que pertença a uma época em que a pauta feminista não era sequer levada em consideração. Eu não ataco o cantor, eu corrijo a letra”, alega.
PARA TODAS E TODOS
Não é de hoje que letras de músicas caem nas vistas do politicamente correto.
No carnaval de 2017, blocos de rua deixaram de tocar marchinhas que soassem ofensivas e, quem optou por mantê-las, o fez em meio a debates e discussões calorosas sobre o tema.
(na Folha, você pode ler opiniões diversas aqui, aqui, aqui, aqui, aqui ou aqui, por exemplo)
“A página acolhe todo mundo, sem distinção. Não quero atacar ninguém, quero abraçar. Quero dizer ‘olha, essa letra é intolerante’, poder ouvir um ‘eu não acho!’ e promover, assim, um debate, o que é importante”, finaliza Camila.