Como funcionam e para que servem os filtros do Instagram
Renan Marra
A ação violenta de quatro policiais que culminou, em maio, na morte de George Floyd, 46, na cidade de Minneapolis, nos Estados Unidos, originou uma série de protestos antirracistas nos EUA e no mundo e aumentou a visibilidade para outros casos de violência policial contra negros, inclusive no Brasil.
As fotos e vídeos que registram essas cenas chocam. Pessoas negras, homens ou mulheres, desarmados e indefesos, são brutalmente agredidas por agentes públicos do Estado que ultrapassam os limites da lei.
As imagens despertam uma série de sentimentos como revolta, raiva, ódio, medo e insegurança. A violência levanta uma outra discussão nas redes sociais. Essas imagens devem ser mostradas?
No Instagram, por exemplo, muitas agressões policiais recebem um filtro em que a imagem aparece borrada e é acompanhada de um texto com a mensagem: “Conteúdo delicado. Esta foto pode apresentar conteúdo explícito ou de violência”. O usuário precisa, então, clicar em “ver foto” para visualizá-la na íntegra.
Em suas diretrizes de comunidade, o Instagram justifica que pode limitar a visibilidade de algumas postagens denunciadas pelos usuários por “conter conteúdo sensível” e assim “ajudar as pessoas a evitar publicações que não gostariam de ver”.
Outra forma do filtro aparecer é com a tecnologia do próprio Instagram, que detecta, por meio de machine learning (aprendizado de máquina), imagens consideradas problemáticas –e não apenas em relação à violência policial.
Certos conteúdos são expressamente proibidos no Instagram, entre eles corpos nus (mesmo imagens artísticas) e, se postados, serão removidos pela plataforma. A tolerância é zero, o que enfurece artistas e fotógrafos profissionais. Incentivo à automutilação e ao suicídio também entra na lista.
Há ainda o filtro para desinformação, em que a foto é borrada e aparece o texto “Informação falsa. Checada por verificadores de fatos independentes. Entenda”. Inclusive postagens do presidente Jair Bolsonaro já foram rotuladas assim.
O critério para o filtro de conteúdo delicado é mais subjetivo e navega entre a informação jornalisticamente relevante que, no entanto, contém imagens que graficamente podem sugerir ofensas para pessoas ou grupos.
Uma série de posts da Folha sobre violência policial recebeu o filtro nos últimos meses.
Curiosamente, no entanto, outras postagens sobre o mesmo assunto não tiveram a imagem borrada.
Isso pode ser explicado ou porque não houve denúncias suficientes de usuários ou porque a machine learning não identificou a imagem –uma possiblidade para o não reconhecimento é a não viralização da imagem.
Quem publica as imagens que ganham filtro não recebe nenhuma notificação explicando os motivos.
Para Alexandre Bessa, professor de canais digitais da ESPM, os critérios não são claros, e dificilmente serão. “Filtro é uma forma de fazer comunidade sadia, mas no geral o critério é vago, subjetivo. É difícil porque não é fórmula matemática, depende de muitos fatores, e isso varia de país para país”.
No final de agosto o Instagram atualizou algumas diretrizes da comunidade para tentar ser mais explícito sobre o que pode ou não ser publicado. Quanto mais transparência nessa questão, melhor para a plataforma e seus usuários. Leia aqui.
A discussão ainda traz dois pontos. Uma é sobre os registros históricos. Cenas como a de George Floyd são capazes de alterar o curso da história, com a onda de protestos antirracistas e a derrubada de estátuas. As cenas dos livros de história passam a ganhar filtros que antes inexistiam. Para Alexandre Bessa, os filtros automáticos fazem parte de nossa época. “Isso é registro histórico também.”
A segunda questão diz respeito ao modo como alguns grupos recebem uma mensagem, diferente da recepção por outros. Joice Berth, escritora e feminista negra, se diz favorável aos filtros nesses casos.
“Pela minha experiência, essas imagens de violência explícita são gatilho para muita gente que já passou por essas situações e trabalham com isso, que sofrem impacto grande. É necessário ter cuidado porque lidamos com todo tipo de pessoa, e [é preciso] deixar que elas mesmas decidam se têm estrutura psicológica naquele momento para acessar imagens ou não. Não só imagens raciais, mas de gênero, qualquer tipo de violência”.
Confira, a seguir, entrevista com Joice, sobre filtros e o atual momento das redes sociais.
O filtro é uma demanda de minorias? Pela minha experiência, acho que essas imagens de violência explícita são gatilho para muita gente que já passou por essas situações e que sofrem impacto grande. As pessoas não têm entendimento do quanto uma imagem pode despertar alteração, ansiedade e desconforto em quem já passou por uma situação de violência. A questão é justamente essa. Quem faz a postagem muitas vezes quer conscientizar sobre a gravidade de determinado assunto. Mas é necessário ter cuidado porque lidamos com todo tipo de pessoas e, portanto, deixar que elas decidam se têm ou não estrutura psicológica para ver determinado conteúdo.
O filtro é, portanto, necessário? Penso que sim. Postagens minhas sobre o policial que pisou no pescoço de uma senhora de Parelheiros (zona sul de São Paulo) receberam filtro e a mensagenzinha de imagem sensível. É uma solução eficiente porque proibir é complicado. Estamos em um momento de discussão sobre bloquear o diálogo e há discursos perigosos. Essa coisa do cancelamento, por exemplo.
As pessoas reclamam, mas é um momento sensível porque liberdades correm risco. Não dá para proibir na rede social, mas tem de ter outras maneiras de acessar o mesmo conteúdo. Então é necessário abrir diálogo para a pessoa se certificar de que a escolha de ver a imagem é dela.
Estou em grupo de Facebook e de vez em quando alguém coloca material sobre resgate de animais em situação de violência, por exemplo. Falo por experiência própria: nem sempre estou forte o bastante, sem me acertar psicologicamente, para ver cachorro torturado. E com pessoas é a mesma coisa. As imagens do George Floyd me deixaram abalada, mesmo sendo uma pessoa que trabalha com essas questões. Então é bacana dialogar com o usuário de que o conteúdo pode ser sensível para ele.
Parte do movimento negro diz que os negros quase sempre são retratados em situação de violência. O filtro diminui esse desconforto? Raciocinando por esse caminho entramos na questão da desumanização dos corpos negros. Eu gosto de postar sobre vários assuntos, e quando tem postagem de foto na praia, com pessoas sorrindo e tomando cerveja, a repercussão é bem menor. Quando tem alguma relação com violência racial explícita, isso tem engajamento espantoso, fora dos padrões para a minha rede social. Esse caso da mulher de Parelheiros atingiu mais de 150 mil pessoas. Agora colocar uma artista negra, expor uma pessoa negra humanizada já não tem o mesmo engajamento. O alcance é bem menor.
Isso mostra o vício da sociedade na desumanização do corpo negro. Os filtros servem mais para preservação das pessoas que se chocam com essas imagens, mas essa busca pela desumanização do corpo negro expressa racismo velado. Parece que todo mundo se importa [com a violência contra negros], mas se a causa importasse tanto estariam solicitando também que imagens de pessoas humanizadas fossem recorrentes. Então nessa seara não dá pra influenciar com filtro, mas talvez seja necessário, por exemplo, mensagens do Instagram incentivando a humanização de pessoas negras.
Expor a violência e ter um engajamento tão grande não seria forma também de denunciar, e portanto, coibir abusos? A gente fica em um meio termo. Pensando mais no lado negativo de acionar gatilho nas pessoas, a gente precisa ter cuidado com o que exatamente conseguimos levar com certa imagem e não contribuir com a desumanização do corpo negro. Precisa de cuidado de parte das pessoas e, nesse sentido, o filtro serve para mediar isso.
Quando acontecem casos gritantes de racismo, as postagens são reativas. É positivo discutir o assunto e abrir caminho para conscientização, mas não pode, ser deixados de lado a sensibilidade das pessoas e o imaginário social de desumanização da pessoa negra. É questão de bom senso ter mais serenidade.
Casos de violência aparecem mais por causa das redes. Tem até a hashtag blacklivesmatter que reúne material de violência. Isso é positivo? Mas o movimento não percebe diminuição da violência mesmo com tanto material na rede. No Brasil o racismo tem cara diferenciada. Pessoas que acham que não são racistas porque tem proximidade com pessoas negras, quando percebem as imagens nas redes, se dão conta da gravidade. Aí esse conteúdo é educativo para elas.
Então percebo também que pessoas que subestimam a pauta racial no Brasil, quando veem imagens nas redes, às vezes param para refletir e fazem leitura diferenciada. Mas não é uma regra. E quando passou a onda do George Floyd, a rede deixou de lado esse assunto também. Mas toda forma de conscientização é positiva.