Ódio e nojo: discurso de Ulysses contra a ditadura ressurge no aniversário do golpe de 64
“Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo” talvez seja a frase mais marcante do discurso de Ulysses Guimarães no dia 5 de outubro de 1988 durante a promulgação da Constituição Federal. O trecho contundente é tão atual em 2021 quanto o era no momento em que foi proferido.
Nas redes sociais, em especial no Twitter, pessoas relembram a importância da fala de Ulysses Guimarães naquele dia que marcou a grande vitória contra a ditadura militar no Brasil. O momento é oportuno. Isso porque em 2021 os discursos se inflamaram. Na segunda (29), o presidente Jair Bolsonaro demitiu seu ministro militar legalista levando a maior crise militar no país desde a ditadura. No dia seguinte, 30 de março, a um dia do aniversário do golpe de 1964, os três comandantes das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) pediram demissão por não se curvarem às vontades do presidente da República.
Coincidência ou não, há quem deseje comemorar a ditadura, a repressão, as mortes, os desaparecimentos daqueles contrários ao regime, a perseguição a imprensa, a censura, tortura e o medo.
Em 30 de março de 2019, a juíza Ivani Silva da Luz, da 6ª Vara da Justiça Federal em Brasília, cassou uma liminar que proibia o governo Bolsonaro de promover a realização de eventos alusivos ao golpe de 1964. Cerca de um ano depois, a 3ª Turma do TRF-5 (Tribunal Regional Federal da 5ª Região) autorizou o governo do capitão reformado a manter a celebração do golpe, paradoxalmente, como um “marco da democracia”.
O discurso de Ulysses Guimarães exaltava a Carta que rege, desde então, o Brasil, e também enaltecia a participação de cidadãos na elaboração da Constituição. Sobre o grande produto daquele esforço pela liberdade, Ulysses disse que “a Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca”.
Ao que tudo indica, apesar de haver quem comemore o aniversário da ditadura, há quem faça suas as palavras de Guimarães:
Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promulgamos o Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia bradamos por imposição de sua honra. Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania aonde quer que ela desgrace homens e nações. Principalmente na América Latina.
Veja algumas das publicações no Twitter sobre o discurso que completará 33 anos em outubro de 2021.
Quem foi Ulysses Guimarães
Um político brasileiro, advogado e professor universitário de direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie, Faculdade de Direito de Itu e na Instituição Toledo de Ensino, também em Itu.
Guimarães presidiu a Assembleia Nacional Constituinte nos anos de 1987 e 1988. O político, então deputado federal por São Paulo —cargo que ocupou por 11 mandatos consecutivos— foi um dos parlamentares que lutou abertamente contra o regime militar.
Ulysses Guimarães teve seu nome gravado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, um memorial criado por Oscar Niemeyer para homenagear heroínas e heróis nacionais. Entre os homenageados estão Zumbi dos Palmares, Tiradentes, Heitor Villa-Lobos, Zuzu Angel, Dandara dos Palmares, Bárbara de Alencar, Machado de Assis, Euclides da Cunha e Luís Gama.
Leia o discurso na íntegra
“Senhoras e senhores constituintes.
Dois de fevereiro de 1987. Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. São palavras constantes do discurso de posse como presidente da Assembléia Nadcional Constituinte.
Hoje. 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou. (Aplausos). A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos Poderes. Mudou restaurando a federação, mudou quando quer mudar o homem cidadão. E é só cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa.
Num país de 30 milhões, 401 mil analfabetos, afrontosos 25 por cento da população, cabe advertir a cidadania começa com o alfabeto. Chegamos, esperamos a Constituição como um vigia espera a aurora.
A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo.
A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.
Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério.
Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promulgamos o Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia bradamos por imposição de sua honra.
Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. (Aplausos)
Amaldiçoamos a tirania aonde quer que ela desgrace homens e nações. Principalmente na América Latina.
Foi a audácia inovadora, a arquitetura da Constituinte, recusando anteprojeto forâneo ou de elaboração interna.
O enorme esforço admissionado pelas 61 mil e 20 emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de 1 milhão de assinaturas, que foram apresentadas, publicadas, distribuidas, relatadas e votadas no longo caminho das subcomissões até a redação final.
A participação foi também pela presença pois diariamente cerca de 10 mil postulantes franquearam livremente as 11 entradas do enorme complexo arquitetônico do Parlamento à procura dos gabinetes, comissões, galeria e salões.
Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiras, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar.
Como caramujo guardará para sempre o bramido das ondas de sofrimento, esperança e reivindicações de onde proveio.
Nós os legisladores ampliamos os nossos deveres. Teremos de honrá-los. A Naçao repudia a preguiça, a negligência e a inépcia.
Soma-se a nossa atividade ordinária bastante dilatada, a edição de 56 leis complementares e 314 leis ordinárias. Não esquecemos que na ausência da lei complementar os cidadãos poderão ter o provimento suplementar pelo mandado de injução.
Tem significado de diagnóstico a Constituição ter alargado o exercício da democracia. É o clarim da soberania popular e direta tocando no umbral da Constituição para ordenar o avanço no campo das necessidades sociais.
O povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais do que isso, o povo é o superlegislador habilitado a rejeitar pelo referendo os projetos aprovados pelo Parlamento.
A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos. Do Presidente da Repúblcia ao prefeito, do senador ao vereador.
A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune toma nas mão de demagogos que a pretexto de salvá-la a tiranizam.
Não roubar, não deixar roubar, por na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública. Não é a Constituição perfeita. Se fosse perfeita seria irreformável.
Ela própria com humildade e realismo admite ser emendada dentro de cindo anos.
Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora, será luz ainda que de lamparina na noite dos desgraçados.
É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria.
A socidedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou o antagonismo do Estado.
O Estado era Tordesilhas. Rebelada a sociedade empurrou as fronteiras do Brasil, criando uma das maiores geografias do mundo.
O Estado encarnado na metrópole resignara-se ante a invasão holandesa no Nordeste. A sociedade restaurou nossa integridade territorial com a insurreição nativa de Tabocas e Guararapes sob a liderança de André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e João Fernandes Vieira que cunhou a frase da preeminência da sociedade sobre o Estado: Desobeder a El Rei para servir El Rei.
O Estado capitulou na entrega do Acre. A sociedade retomou com as foices, os machados e os punhos de Plácido de Castro e seus seringueiros.
O Estado prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilella, pela anistia, libertou e repatriou.
A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram. (Aplausos acalorados)
Foi a sociedade mobilizada nos colossais comícios das Diretas Já que pela transição e pela mudança derrotou o Estado usurpador.
Termino com as palavras com que comecei esta fala.
A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança.
Que a promulgação seja o nosso grito.
Mudar para vencer. Muda Brasil.”