Economista Maria da Conceição Tavares vira ‘diva pop’ e ‘intelectual invejável’ para jovens na internet

Gestos firmes, forte sotaque português e uma voz rouca que grita para dar ênfase às palavras. “Se você não se preocupa com justiça social, com quem paga a conta, você não é um economista sério. Você é um tecnocrata”. É assim a cena que deu à economista Maria da Conceição Tavares, de 91 anos, o status de “diva pop” dos jovens de esquerda na internet.

O vídeo, que viralizou primeiro no TikTok, é um trecho da entrevista dela ao Roda Viva, da TV Cultura, em 1995. Disponibilizado no YouTube em 2020, o material introduziu Tavares à geração que mal sonhava nascer quando ela já era “guru de uma legião de economistas de esquerda”, como foi apresentada no programa.

Hoje aposentada, Conceição vive em Nova Friburgo, na região serrana do Rio de Janeiro. Um dos filhos, Bruno Tavares, diz que ela está bem de saúde e afirma que sua última aparição pública foi em 2018, no lançamento do documentário biográfico “Livre Pensar”, de José Mariani. Ao #Hashtag, Bruno diz que soube pelos filhos do sucesso da mãe entre a nova geração e que tem se divertido com o momento.

Na entrevista que viralizou, Conceição dá puxões de orelha nos seus discípulos ligados ao Plano Real e tem discussões acaloradas com convidados do programa. Quando ocupou o centro do Roda Viva, a então deputada petista estava rodeada por oito homens. Falou mais alto do que todos eles e dominou os embates que surgiram. 

Em um dos trechos mais populares do programa, Tavares perde a paciência com Carlos Alberto Sardenberg, repórter especial da Folha à época. “Sardenberg, não vai discutir comigo a balança de pagamento, vai? Se olha”, diz, deixando o jornalista desconcertado. Em seguida, ela gira a cadeira e “segue o baile”, à procura da próxima pergunta.

Cortes de entrevistas, aulas e palestras de Conceição são compartilhados diariamente em pelo menos dois grandes perfis no Twitter dedicados exclusivamente a ela. O maior deles (@acervo_tavares) já passa de 29 mil seguidores em menos de um mês de criação. Quem está por trás do “acervo”, como é chamado esse tipo de conta, é um rapaz de apenas 19 anos. 

Adriano Zanata Morey vive em Porto Velho, capital de Rondônia, e se diz encantado com o estilo enérgico adotado por Tavares nas aulas publicadas pelo Instituto de Economia (IE) da Unicamp. “Tem algo de especial numa portuguesa gritando em sala de aula. Gosto de professor que tem esse jeito de falar alto e despertar o interesse nos alunos”, diz o jovem.

No ano passado, Adriano não alcançou a nota de corte necessária para cursar direito e decidiu continuar se preparando para o Enem. Enquanto estudava, ouvia as aulas de Conceição ao fundo, como se fosse um podcast. Fez as provas e marcou mais pontos do que precisava. Mas de tanto escutar Tavares berrar contra os “tecnocratas”, mudou de ideia e decidiu cursar ciências econômicas.

Aprovado em terceiro lugar, iniciará as aulas na Universidade Federal de Rondônia (UNIR) em novembro. Enquanto isso, dedica-se ao acervo da professora que o inspira. “Conceição representa a vontade de lutar pelo país, estudar para entender como ele funciona e como poderia ser melhor. Espero que eu também consiga construir algo melhor para a comunidade como um todo.”

A fala de Adriano tem relação com o papel de Tavares na economia nacional. A portuguesa chegou ao Rio de Janeiro em 1954, fugindo da ditadura salazarista. Formou-se no curso de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e depois tornou-se professora lá e na Unicamp.

Dali em diante, entre seus orientandos, estão uma lista diversa que vai da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) ao senador licenciado José Serra (PSDB-SP), incluindo presidentes de bancos, secretários e Ministros da Economia, além de outros acadêmicos renomados.

Sua contribuição junto à economia política brasileira começa na década de 1950, no Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek. Depois, passa pelas Diretas Já, no início dos anos de 1980, e chega ao seu auge na elaboração do Plano Cruzado, em 1986. Foi nesta fase em que Conceição virou rosto conhecido do público.

A então assessora do Governo Sarney bateu ponto em diversos programas de TV para explicar como o projeto pretendia combater a hiperinflação sem prejudicar os mais pobres. Tavares ficou marcada pela cena em que chorou ao falar da importância do plano durante entrevista à Globo –o projeto não salvou a economia brasileira, que só foi se estabilizar após o Plano Real, de 1994. 

Talvez aquele tenha sido seu primeiro meme. Num tempo em que TikTok era apenas o som do relógio, a comediante Nádia Maria interpretava uma personagem inspirada em Conceição na “Escolinha do Professor Raimundo”. Dona Maria da Recessão Colares era questionada sobre assuntos econômicos, tinha sotaque português, fumava em sala, esbravejava e terminava suas participações sempre aos prantos.

Memes à parte, a trajetória da “guru esquerdista” fascinou Biana, de 25 anos, cantora e estudante de ciências sociais na USP. Ela é criadora de outro acervo (@acervotavares) dedicado à economista, esse com mais de 27 mil seguidores. Lá, a universitária diz, quer fugir da representação de Tavares apenas como uma pessoa caricata. “Tento mostrar que ela é também uma intelectual invejável.”

Primeiro, Biana leu “Maria da Conceição Tavares – vida, ideias, teorias e políticas” (Expressão Popular, 2019), livro em que Hildete Pereira de Melo reúne textos originais da professora. Depois, assistiu ao tal episódio do Roda Viva. Não deu outra: ficou obcecada por Conceição. “Tudo nela é extremamente cativante. Seus trejeitos, o cigarrinho na mão, o senso de humor impecável. Essas características fazem com que seja impossível que ela passe despercebida.”

André Pinheiro, de 19 anos, estudante de direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), destaca os trejeitos de Conceição em uma “fancam”, estilo de vídeo que compila imagens de uma pessoa famosa ao som de canções performáticas. Para ele, Conceição é uma “diva do Twitter”. “Sempre surgem personagens assim, mas que desaparecem depois de um tempo, ‘saturam’, como dizem. Não sei se vai ser o caso da Maria”.

Já são mais de 108 mil visualizações na edição de André, que “hitou”, isto é, fez sucesso nas redes sociais. “Tenho muito apreço e respeito pela Conceição. Por mais que a ‘fancam’ pareça boba, creio que muita gente a conheceu por meio desse vídeo e pelo material dos acervos.”

Os vídeos da portuguesa são os mais assistidos do perfil do Instituto de Economia da Unicamp no YouTube. O primeiro tem mais de 125 mil visualizações. As 12 aulas são de uma disciplina sobre economia política ministrada em 1992. Atraído pelo meme da professora que fuma em sala, o espectador poderá passar 18 horas assistindo à docente compartilhar seu vasto conhecimento sobre as práticas econômicas nas mais diversas épocas e lugares.

“É uma aula ‘raiz’”, sintetiza o professor André Biancarelli, atual diretor do IE. Ele não foi aluno de Conceição, mas participou de eventos com ela, os quais considera “inesquecíveis”. “Não é uma aula simples. Ela diz muitas coisas ao mesmo tempo. Tem um estilo de retórica e escrita um pouco caóticos. Em meio a esse estilo, ela deu contribuições não só para entender o passado, mas para identificar mudanças importantes na economia internacional”, afirma.

Na “aula raiz” de Conceição, “tecnocratas são diabólicos”, “direito menor é a vó do Kant”, “Paris é uma ‘pinoia’ que não ia para lugar nenhum”, “a direita é ‘parva’” e “os atrasados, sentem-se”. Pausa para acender um cigarro. Segue com “a Inglaterra nasceu, foi parida e morrerá com o mercado mundial”, e termina com “se alguém tem dúvida, tire agora, porque quando eu sair no corredor, quero ir rapidinho para casa”.

“Se alguém tem dúvida, tire agora, porque quando eu sair no corredor, quero ir rapidinho para casa”

Para Biancarelli, Maria da Conceição contrasta com a imagem do burocrata frio. “Ela se envolveu sempre com muita paixão e emoção pelas coisas. Nos seminários, ela era a primeira da fila e rapidamente se levantava para discutir com quem estava expondo, caso discordasse, ou para elogiar muito. Esse envolvimento é um exemplo para todo mundo.”

Os vídeos da professora fazem tanto sucesso, que o canal do IE, com 23 mil inscritos, passou a ser visado por hackers. O perfil foi atacado na última terça-feira (26), comovendo os fãs de Conceição. Os acervos rapidamente divulgaram o pedido para que o YouTube avaliasse a situação com urgência. Caso a conta não fosse recuperada, o que se sabe é que os vídeos de Tavares estavam salvos e espalhados pela web.

Outros canais com a mesma temática também foram invadidos e utilizados para transmitir lives sobre criptomoedas. “Os invasores viram que um canal sobre economia estava em ascensão e tinha muitas visualizações. Devem ter trabalhado para hackear a conta e conseguiram, por causa de uma vulnerabilidade na autenticação de dois fatores do Google”, afirma Davi Carvalho, assessor de comunicação do instituto.

Para alegria dos “tavarers”, como são chamados os fãs de Conceição, o professor Biancarelli anunciou no Twitter que o canal havia sido recuperado na quarta-feira (27). Ele agradeceu à solidariedade dos tuiteiros. “Convido a que continuem acompanhando, tudo que tem por lá, de ontem, hoje e do futuro”, escreveu.

Assim como nas aulas do IE, Conceição deu sua opinião em momentos importantes da história recente do Brasil. Manifestou-se contra a aprovação da PEC do Teto dos Gastos Públicos (cuja discussão sobre o furo de Guedes e Bolsonaro está em voga) e se opôs ao impeachment de Dilma em 2016. Mais tarde, em 2018, endossou o coro “Lula Livre” e depois declarou voto em Manuela D’Ávila (PCdoB), antes que a pré-candidata optasse por ser vice de Fernando Haddad (PT).

Mesmo longe das salas da UFRJ e da Unicamp, Maria da Conceição Tavares continua dando aula a cada pedaço de vídeo compartilhado na internet. Num deles, gravado em 2011, durante a entrega do prêmio Almirante Álvaro Alberto para Ciência e Tecnologia, fala do orgulho pela nacionalidade brasileira.

“Espero morrer feliz por ser brasileira e infeliz por ser europeia. Lamento muito, mas acho que não vou conseguir passar a crise europeia. É uma crise muito longa. Mas ser brasileira ajuda. E tenho meus filhos e meus netos que continuarão a luta por mim e por esse país. Muito obrigada.”

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