Corte de verba é tiro fatal na educação, diz especialista sobre quedas do Brasil em rankings
Enquanto a China investe maciçamente no ensino superior e só cresce nos rankings internacionais, o Brasil reduziu à metade o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. O resultado? Estamos caindo nesses mesmos rankings.
A jornalista Sabine Righetti, do blog Abecedário, foi a oitava convidada do Fale, blogueiro, programa semanal de entrevistas com blogueiros da Folha no Instagram Stories.
E foi sobre a educação no Brasil –do ensino básico ao superior– e seus desafios que a conversa caminhou.
Assista à íntegra ou leia os melhores trechos.
Sabine, você está desde 2012 à frente do RUF…
Eu brinco que o RUF é meu filho de sete anos, pois agora em 2018 vai ser a sétima edição. Muitos jornais do mundo têm rankings universitários, há cerca de 60 pelo mundo. A ideia é orientar alunos principalmente na escolha do curso de uma instituição. O estudante vê indicadores, o que se fala sobre o curso, como está a empregabilidade, características do corpo docente. O RUF tem servido para muitas outras coisas. Por exemplo, gestores públicos se baseiam muito para tomada de decisões, há impacto do RUF em gestão das universidades, se contratam mais docente ou não. O RUF é um grande retrato do ensino superior brasileiro. Eu visito as instituições, falo com gestores, reitores, explico metodologia, coleto sugestão. Eu visitei todas as 195 universidades (público e privadas) e todas as 2.400 faculdades e instituições do país.
O que explica a queda das universidades brasileiras nos rankings internacionais?
O Times Higher Education compara universidades do mundo todo, creio que seja o ranking mais importante. O que ele mostrou é que o Brasil vem num caminho de queda, as boas universidades brasileiras estão caindo. E quem está subindo muito é a China (e depois a Rússia). Das dez melhores universidades dos países emergentes, sete são chinesas. A USP, a melhor brasileira, está caindo nesse ranking. Perdemos dinheiro do MEC (Ministério da Educação), do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (seu orçamento é metade do que era em 2014, descontando a inflação), ou seja, perdemos dinheiro para pesquisa. Já o governo chinês está injetando muito dinheiro nas boas universidades chinesas. No final da década de 90 eles colocaram muito dinheiro nas dez melhores universidades chinesas e agora estão colhendo o fruto. A Rússia tem a meta 5-100, que é colocar 5 universidades entre as 100 melhores do mundo até 2020. Já o Brasil não tem meta nenhuma, a meta é sobreviver e algumas não estão nem conseguindo sobreviver. Todas as federais enfrentam grave crise orçamentária. A UFRJ em setembro do ano passado já não tinha como pagar conta de luz, porque veio pouca verba de custeio (manutenção mínima). A Uerj ficou com quatro meses de salários atrasados. Ou seja, estamos no outro extremo do que faz a China.
A fuga de cérebros está aumentando por conta disso?
A fuga de cérebros é um dos fenômenos mais desastrosos dessa crise. A gente forma uma pessoa na graduação, mestrado e doutorado, com dinheiro público, então ela tem que impactar o país, porque ela é altamente capacitada com dinheiro público. O que acontece é que a crise está tão grande que quando os doutores estão se formando no Brasil não há novas vagas nas universidades, institutos públicos, as empresas estão travando investimento em inovação. E aí toda a nossa grande massa de mão de obra altamente qualificada, em idade nova, lá pelos 30 anos, no auge, saem do país no momento que poderiam dar o retorno. E elas são facilmente contratadas por universidades de pontas no exterior. A neurocientista Suzana Herculano-Houzel persistiu muito antes de sair. As pessoas querem ficar no Brasil, pois em muitos casos a pessoa estudou temas nacionais. Outro fenômeno da crise é a evasão dos alunos. Imagina um estudante de baixa renda numa federal, e acontece um corte de dinheiro para custeio (que entra assistência estudantil, bolsa alimentação, bolsa transporte, moradia estudantil). Tem aluno que se não tiver isso ele não consegue chegar na universidade, então ele sai. Muitas vezes era um aluno brilhante que abandona. São dois tiros fatais que estamos dando na educação.
Como funciona abertura de novos cursos?
Uma universidade tem autonomia para ter um curso. Já as faculdades e centros universitários precisam ter aprovação do MEC, e isso passa por um protocolo. Se a instituição quiser dar um curso novo e preencher os requisitos, seja em infraestrutura, característica docente, aquele curso será aberto. A abertura de novos cursos não é um problema em si, porque na verdade temos pouca gente matriculada no ensino superior do Brasil. Hoje, em idade universitária (18 a 24 anos), só 15% das pessoas estão matriculadas, seja porque ainda estão no ensino médio, seja porque estão fazendo outra coisa da vida. Então, temos que expandir nosso ensino superior significativamente. Agora, como vamos fazer é uma discussão importante. São apenas 8 milhões de matriculados no ensino superior, de todas as idades. 40% de quem entra no ensino superior está acima da idade universitária. Falta expandir muito para chegar aos 70% de matriculados de países desenvolvidos.
E as taxas de financiamento?
A gente trata muito mal nossos estudantes, tanto da universidade pública quanto privada. Para os da privada, o governo lançou, há alguns anos, um grande programa de financiamento estudantil (o Fies). Só que esse financiamento foi sendo reduzido ano a ano e o governo começou a colocar regras, como nota mínima no Enem, começou a restringir áreas e com isso cursos não prioritários perderam o financiamento, começou a restringir condição social da família, então muita gente foi perdendo o financiamento. Essas pessoas ou arrumaram outro financiamento no banco ou na instituição (muitas com juros mais alto) ou elas abandonaram. O índice de evasão está muito alto, o que também é um tiro no pé, pois você tenta expandir o ensino superior, os alunos ingressam, gasta-se dinheiro, a família inteira está engajada no aluno, que é a primeira geração da família no ensino superior, aí no meio do caminho ele perde. Isso é uma frustração muito grande, irreparável. E a gente perdeu um cérebro.
Como você vê o ensino a distância hoje no Brasil?
Está crescendo muito. Para se ter uma ideia, dos cursos de pedagogia, metade é a distância. É um curso com muito alunos, muita demanda (é um dos cinco mais em âmbito nacional). Tem muito professor que já está em sala de aula, por isso a demanda por EAD cresceu muito. Um fenômeno recente que está acontecendo, começou com muita intensidade nos países desenvolvidos e agora está forte aqui, são os cursos mesclados. A pessoa faz graduação presencial, mas algumas disciplinas ela pode escolher fazer a distância, algumas mais teóricas, que eu iria para a sala de aula só para ouvir o professor falar. Então algumas instituições começam a oferecer essa possibilidade de modelo pouco híbrido. Se eu fosse falar de tendência, essa é a do momento. Tem quem critique, tem quem elogie, há uma literatura sobre isso.
Mas como é a qualidade?
O ensino a distância tem uma evasão bem grande, é difícil se regrar, ficar em casa estudando, não é todo mundo que consegue. Mas o que se observa é que o aluno que termina é muito bom, porque ele é muito determinado, então já se observou que estudante que conclui a distância tem muitas vezes um desempenho profissional melhor que o presencial. É quase algo como social skills, porque a pessoa é muito batalhadora, concentrada. Inclusive está quebrando o estereótipo do ensino a distância que vem lá dos Telecursos, que seria de quem não quer estudar.
Por que as mães dos brasileiros não conseguem desgrudar de seus filhos?
Isso está muito forte no Brasil. Toda vez que participo de congressos internacionais vejo que isso nem é um assunto lá no exterior. As boas universidades dos EUA exigem que os alunos morem na moradia estudantil ou nas redondezas. No caso de Stanford, mesmo que o aluno seja da região, tem que morar na moradia estudantil. Entende-se que precisa romper esse vínculo para fazer a passagem para a vida adulta. E também é necessário estar longe da família para aprender a resolver problema sozinho, na universidade ou na casa. É parte do amadurecimento que a universidade espera. E aqui temos o fenômeno da mãe latina (muitas vezes o pai também) que acompanha o filho, e continua indo discutir os problemas do filho como notas com professores, diretores, explicar falta de alunos. Isso na graduação e pós-graduação. Eu vejo isso, os coordenadores de curso me falam que cada vez mais recebem mais mães aqui. Elas decidem qual estágio o filho vai fazer e leva na porta. Muitas mães vêm tirar dúvida comigo no Abecedário, e não os filhos.
Um estudo sugeriu aumentar a adolescência até os 24 anos.
Esse estudo é baseado na ideia de que a última parte cerebral que fica pronta é o córtex frontal, com mais ou menos 24 anos. O que está por trás é que se a gente não tem o cérebro pronto para tomada de decisão de longo prazo talvez tivéssemos que aumentar a adolescência. Mas isso não significa que tenhamos que tratar os filhos como criancinhas.
Sabine, pensamos muito em Escola Sem Partido e esquecemos de alguns pontos fundamentais da educação aqui no Brasil, não?
O que está por trás disso tudo é que a gente não planeja política pública com base em estudos, não olhamos para o que os pensadores de educação no Brasil e no mundo dizem, e de áreas correlatas. A gente ignora tudo o que os cientistas falam e tomamos decisões da nossa cabeça. Por exemplo, isso de acordar mais tarde. Tem uma ampla literatura que mostra que principalmente na adolescência temos uma defasagem cognitiva muito cedo. Não por coincidência, em alguns países desenvolvidos, a escola começa mais tarde. Quer dizer que você fica torturando o adolescente “ai tem que acordar, você é preguiçoso”. No Brasil as escolas começam às 7h. O adolescente dorme na sala, ele está cansado, o cérebro não funciona. Tem explicação biológica, fisiológica. O aluno não vai aprender. Isso realmente tinha que estar em debate. Até porque muitas coisas mudaram. Uma explicação é que a escola pública no Brasil tem dois turnos, mas peraí, se estamos perdendo qualidade de educação então que se construa mais prédios. Outro exemplo é a importância da atividade física para o cognitivo. Na Finlândia, por exemplo, para cada aula grande há um intervalo para atividades físicas. Já no Brasil em certo momento chegou-se a discutir a retirada da educação física da escola, sendo que há uma literatura que aponta a importância no desenvolvimento cognitivo e social. No Brasil, ignoramos a literatura e fazemos coisas da cabeça.
E como você vê o Escola Sem Partido?
É exatamente isso. Estamos fazendo política pública achando que estamos na Dinamarca, mas estamos no Brasil. E aqui 1 a cada 5 crianças nascidas são filhos de adolescentes. E não podemos ignorar isso, se você visitar uma escola vai ver uma adolescente grávida. Então precisamos falar de gênero e precisamos falar de educação sexual, porque engravidar é uma questão de gênero. A menina tem que saber que a mulher pode ser empoderada, pode ter uma carreira, para ela saber que escolha ela irá fazer na vida dela. Temos que falar de gênero, de educação sexual. E outra, não tem como não falar. Outro dia eu estava numa escola numa atividade de horta e o professor pediu para o aluno fazer uma coisa e a aluna outra, aí ela: “você pediu para o aluno mexer na terra e eu não porque ele é menino e pode se sujar e eu não”. Já é uma discussão de gênero! Está nos alunos isso, está posto, eles falam. Escola é um ambiente que não se pode proibir discussões.
Quais problemas o Enem enfrenta?
O Enem surgiu no final da década de 90 como um exame que serviria para o governo avaliar como está o ensino médio e pensar em reformulações. O Enem acabou sendo usado como forma de ingresso, depois veio o Sisu, e cada vez mais universidades públicas e privadas passaram a usar. É uma prova gigante, uma das maiores provas do mundo, tem em média de 8 a 9 milhões de inscritos. A logística é muito louca, porque temos um país continental, em que você começa uma prova impressa simultaneamente em São Paulo e no Amazonas, em lugares que você precisa levar a prova de barco, atravessando rio. Certamente é uma das provas mais difíceis do mundo em termos de logística. O vazamento do Enem em 2009, claro, colocou tudo em xeque, mas desde então não teve mais nenhum outro episódio. Mas vazamento de prova não tem sido mais discutido porque o Enem reforçou muito a segurança. E isso tem um custo muito alto, que ninguém sabe quanto custa realmente porque não é revelado. Quando você manda uma prova no barco, você tem que ter segurança em volta. Existe uma discussão de o que dá para fazer diferente com menos custo: vale a pena ter esse custo todo? Não seria melhor fazer o Enem regional? Fazer a prova em vários momentos do ano?
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